EUPJ Torah

Tol’dot – Português

Ten Minutes of Torah

Se é assim, porque existo? A coragem de viver na multiplicidade

por Rabina Lea Mühlstein (traducción por Renata Steuer)
“Os filhos lutavam dentro dela, e ela disse: ‘Se é assim, porque existo?’ E foi consultar o Eterno. E o Eterno respondeu-lhe: ‘Duas nações estão no teu ventre, dois povos se separarão das tuas entranhas; um povo será mais forte do que o outro, e o mais velho servirá ao mais novo.’” (Génesis 25:22–23)

A pergunta de Rebeca atravessa o texto como uma lâmina: “Se é assim, porque existo?” O seu corpo torna-se o lugar de convergência da contradição divina. Duas nações habitam dentro dela, dois futuros lutam no interior do seu ventre. A imagem da Torá é muitas vezes lida como uma profecia de conflito inevitável, mas também pode ser entendida — como ensina a teóloga judaica feminista Judith Plaskow — como uma revelação da multiplicidade.

No seu ensaio “Jewish Theology in Feminist Perspective” (“Teologia Judaica na Perspectiva Feminista”), Judith Plaskow escreve que a teologia feminista “tem as suas raízes na experiência de uma forma mais ampla e mais rica de ser, que procura expressar-se dentro e contra os termos da tradição.” Ao longo da sua obra, Plaskow argumenta que a revelação não é um depósito fixo, mas um trabalho contínuo e comunitário — que cresce através da integração de vozes antes silenciadas e da aceitação das tensões criativas. Assim, o turbilhão de Rebeca deixa de ser uma maldição para se tornar um chamamento. Dentro dela, verdades concorrentes coexistem; ela carrega no ventre um pacto que contém tensão.

A gravidez de Rebeca, vista sob esta perspetiva, é uma metáfora teológica da existência judaica em sociedades que exigem lealdade única. A pergunta que ela faz — “Se é assim, porque existo?” — é o clamor de toda a comunidade dividida entre fé e nação, tradição e modernidade.
Em nenhum lugar essa luta se tornou mais intensa do que em França, o berço da emancipação judaica e, mais tarde, da conformidade institucionalizada. Quando Napoleão convocou o Grande Sinédrio em 1807, tinha como objetivo integrar os judeus como cidadãos franceses leais, impondo que eles redefinissem a sua fé dentro da lógica do Estado. O Sinédrio tinha por tarefa responder a doze perguntas destinadas a comprovar que o judaísmo era compatível com o Código Napoleónico: os judeus casar-se-iam com não-judeus? Obedeceriam à lei civil acima da halachá? Serviriam nas forças armadas?

Embora as perguntas de Napoleão não tivessem sido todas feitas de boa-fé, a comunidade judaica abraçou com boa vontade o projeto napoleónico de reconciliar duas nações dentro de um mesmo corpo: a República Francesa e o povo judeu. Contudo, essa integração teve como custo a perda da autonomia. Pois dessa iniciativa nasceu o sistema consistorial, uma estrutura centralizada destinada a controlar a vida religiosa judaica sob supervisão estatal.

Um século mais tarde, o rabino Louis Germain Lévy (1866–1946), um dos fundadores da Union Libérale Israélite de Paris (ULIP) em 1907, confrontou esse legado. Lévy, o respeitado rabino erudito da sinagoga da Rue Copernic, procurou afirmar tanto a identidade francesa como a independência espiritual judaica. Abraçou o universalismo da República, mas resistiu ao monopólio do Consistório. Como os gémeos de Rebeca, esses dois impulsos lutavam dentro do mesmo corpo.

Os sermões e escritos de Lévy revelam o seu esforço para interpretar o judaísmo como uma fé moral e racional, compatível com os valores cívicos franceses, mas não redutível a eles. Acreditava que, para manter a vitalidade do judaísmo, eram necessárias a liberdade de pensamento e a reforma ritual. A Union Libérale ofereceu um lar a judeus que se sentiam franceses em espírito, mas que ansiavam por um judaísmo aberto à modernidade, à igualdade e à honestidade intelectual. Nesse sentido, Lévy concretizou a conceção de Plaskow da revelação como diálogo: a tradição voltando a falar na linguagem do seu tempo.

Mas, tal como acontecera no ventre de Rebeca, as relações entre as “duas nações” tornaram-se tensas. O Consistório acusava os judeus liberais de traição; já os liberais acusavam o Consistório de estagnação. Cada qual reivindicava carregar a verdadeira herança. Em França, como em Génesis, a questão não se limitava a quem governaria, mas a como ambas as facções poderiam coexistir sem que uma aniquilasse a outra.

A teologia de Plaskow convida-nos a ler esta história não como uma tragédia de cisão, mas como um sinal de vida. Uma fé capaz de sustentar verdades opostas é uma fé que continua viva. A história judaica francesa, como a de Rebeca, não é o triunfo de uma verdade sobre a outra; pelo contrário, afirma que tanto os deveres cívicos como os pactuais coexistem no interior de uma mesma identidade.

Hoje, as comunidades judaicas liberais francesas — organizadas sob o Judaïsme en Mouvement e a Fédération du Judaïsme Libéral — são uma ponte entre tradição e modernidade, entre a particularidade judaica e a ética universal. O seu compromisso com a igualdade de género, o diálogo inter-religioso e os valores republicanos reflete uma identidade que se recusa a aceitar a unicidade.

A história contada em Tol’dot convida-nos a perguntar o que fazemos com as tensões que vivem dentro de nós. Vemo-las como ameaças à unidade ou como sinais de um pacto vivo? No conflito de Rebeca e na negociação francesa entre fé e cidadania, vislumbramos que a contradição não é um defeito — é um traço de vitalidade.

Viver como judeus liberais é abraçar essa complexidade — saber que fé, identidade e pertença nos levarão sempre em mais de uma direção. A nossa tarefa não é resolver essas tensões, mas habitá-las com integridade. Como Rebeca e os pioneiros do judaísmo liberal francês, afirmamos que a bênção divina se encontra na coragem de viver com verdade dentro da multiplicidade.

More News