Noach – Português
Pacto e resiliência depois do dilúvio
por Rabina Lea Mühlstein (traducción por Renata Steuer)
“Deus disse ainda: ‘Este é o sinal que estabeleço para o pacto entre Mim e vós, e todo o ser vivo que está convosco, até à última geração: coloquei o Meu arco nas nuvens, e este será o sinal do pacto entre Mim e a terra. Quando Eu fizer com que as nuvens se formem sobre a terra e o arco aparecer nas nuvens, lembrar-Me-ei do Meu pacto entre Mim e vós, e todos os seres vivos, toda a carne; e nunca mais as águas se tornarão um dilúvio que venha a destruir toda a carne.’” (Génesis 9:12–15)
No centro da parashá Noach encontra-se o pacto do arco-íris: a promessa eterna de Deus de nunca mais aniquilar a criação através de um dilúvio. A Torá apresenta esta imagem num momento de fragilidade insuportável. A humanidade mal sobreviveu; apenas Noach e a sua família emergem da arca para um mundo marcado pelas cicatrizes da destruição. O arco-íris, curvando-se sobre o céu nublado, proclama que a catástrofe não é o fim, mas o início do pacto entre Deus e a humanidade.
O poder da Torá reside no paradoxo de que sobreviver nunca é simples. Noach carrega tanto o peso da devastação como o fardo da reconstrução. O pacto do arco-íris não se restringe apenas a uma promessa divina — inclui também um convite aos seres humanos para se tornarem guardiões da criação, portadores da memória e construtores da renovação. Essa dupla realidade, feita de destruição e renascimento, encontra ecos dolorosos na história judaica moderna.
Tal como Noach entrou em um mundo quase destituído de vida humana, também o judaísmo europeu enfrentou uma devastação inimaginável no século XX. Às vésperas da Shoá, o judaísmo holandês era vibrante e diverso. Amesterdão albergava uma comunidade judaica pujante. Em 1931, o movimento dos Judeus Liberais dos Países Baixos foi fundado em Haia, sob o nome Verbond (“pacto”), por Levi Levisson. Apenas um ano depois, a Congregação Judaica Liberal de Amesterdão abriu as suas portas, tornando-se uma presença pioneira do Judaísmo Progressista no continente.
A Shoá quase aniquilou por completo esse mundo. Mais de 100.000 judeus holandeses foram assassinados — aproximadamente 75% da comunidade. Foi a maior percentagem de vítimas registada em toda a Europa Ocidental. A vítima mais conhecida, Anne Frank, permanece como um símbolo duradouro do sofrimento e da voz judaica. O seu diário tornou-se um testemunho não apenas da enormidade da destruição, mas também da notável resiliência do espírito humano. “Não penso em toda a miséria, mas na beleza que ainda permanece”, escreveu em julho de 1944. Como o arco-íris, as suas palavras recordam-nos que, mesmo em meio às nuvens da tempestade, um frágil sinal de esperança pode surgir. Contudo, a voz de Anne Frank, tão cheia de expectativa, foi silenciada no campo de extermínio de Bergen-Belsen. O dilúvio holandês da Shoá parecia avassalador.
Contrastando com esse pano de fundo, o renascimento do judaísmo liberal nos Países Baixos adquire um significado de pacto. A Congregação de Amesterdão quase pereceu juntamente com os seus membros. Mas, no pós-guerra, sobreviventes e seus filhos reconstruíram-na. O que surgiu foi um novo começo, luminoso e resiliente — um arco-íris depois do dilúvio. Na inauguração da sinagoga de Amesterdão, em 1960, o rabino sobrevivente Jacob Soetendorp definiu esse ato de reconstrução como um desafio de pacto:
“Viver como judeu nos Países Baixos depois de Auschwitz é, em si, uma declaração de que o pacto não foi quebrado.”
O movimento liberal holandês tornou-se um cadinho de força. Fundou novas comunidades em antigas cidades judaicas como Deventer, Alkmaar e Utrecht — aproximadamente uma a cada doze anos. Também abriu caminho para iniciativas pioneiras como Judaism in a Box (Judaísmo numa Caixa), que reconectou mais de uma centena de judeus com a sua herança, e continua a propor novos modelos de diálogo público através de projectos como Neighbours (Vizinhos), que convida crianças não-judias a aprender com — e sobre — os seus vizinhos judeus. Este projecto multiplicou-se, sendo adotado por congregações em toda a Europa através da parceria entre a União Europeia para o Judaísmo Progressista e a HIAS-Europa.
Em 2010, a Congregação Judaica Liberal de Amesterdão inaugurou a sua nova sinagoga, concebida para ser uma casa de oração, um centro de aprendizagem e um espaço de encontro entre diferentes grupos religiosos e étnicos. A ideia de espalhar luz foi incorporada à própria arquitectura: o seu traço mais marcante é uma enorme janela em forma de menorá de sete braços, que inunda o santuário de luz durante o dia e irradia luminosidade durante a noite. Proclamando resiliência e abertura, a arquitectura do edifício — construída em vidro e pedra — é uma reafirmação do pacto: a vida judaica nos Países Baixos, além de perdurar, irradia luz.
O pacto do arco-íris que lemos em nossa parashá vincula o pacto divino à responsabilidade humana. O judaísmo holandês do pós-guerra, ao escolher reconstruir, aceitou a sua parte neste pacto. Criar uma nova vida judaica sobre um solo impregnado de memórias é um ato de parceria sagrada. O testemunho de Anne Frank, a declaração do rabino Soetendorp e a comunidade viva do judaísmo liberal holandês recordam-nos que o pacto não é anulado por uma catástrofe. O arco-íris não apaga a escuridão — desvia-a do seu curso e transforma-a em novas cores.
O pacto do arco-íris desafia-nos hoje a considerar como vivemos após os dilúvios do nosso próprio tempo. Como se dará a sobrevivência do pacto numa era de crise climática, guerra e ressurgimento do antissemitismo? A história do judaísmo holandês não oferece consolo fácil. Em vez disso, oferece um modelo de coragem: motiva-nos a permanecer entre as ruínas e, ainda assim, plantar; a lembrar a devastação e, ainda assim, reconstruir; a sofrer perdas e, ainda assim, afirmar a vida.
Quando vemos o arco-íris, lembramo-nos, por um lado, da promessa de Deus de nunca mais destruir tudo e, ao mesmo tempo, da nossa própria responsabilidade de nunca mais permitir que a destruição tenha a última palavra. A parashá Noach ensina-nos que sobreviver a uma catástrofe não é o fim da história: é o início da responsabilidade do pacto. O judaísmo liberal holandês, reconstruído a partir do quase extermínio, encarna essa verdade. Como o próprio arco-íris, ergue-se como um sinal radiante de que a vida, o pacto e a renovação judaica perduram.